quinta-feira, 22 de maio de 2008

Ascensor

(Aqui se transcreve o referido conto. Embora haja quem tal o não considere.)



Lado A

“Era uma vez” – assim começam todos os contos dignos desse nome. Na triste narrativa aqui apresentada, não era uma vez. Eram muitas vezes, ou não tratasse a curta história da vida de um elevador, que tantos viu subir e tantos mais descer.

Chegado do trabalho, esbaforido após quatro lances de escada à entrada do condomínio (respeitando o cliché do engravatado transpirado, abrindo a gravata ansiosamente), um indivíduo entra no elevador do seu prédio e, assim que se assegura que não é visto, cheira-se em busca de odores denunciatórios, num deprimente espectáculo, felizmente privado. Bafeja para as palmas das mãos, dispostas em forma de concha, para se certificar que o seu hálito não fede a tabaco (não vá a namorada reclamar de novo). Tranquilizado, coça despudoradamente os testículos, penteia as sobrancelhas no espelho e eis que se abrem as portas do terceiro andar, suavemente, com um imperceptível ruído. Sem sequer olhar para trás, esta personagem segue para diante, de mão no bolso e assobio nos lábios.

Lado B

É de dentro para fora que se vê. No momento em que uma criança inicia a sua interacção com o mundo que a circunda, é de si para o mundo que sente. É assim o ser humano: para ele, o Todo é pouco mais que uma extensão de si próprio. Talvez por isso seja, de quando em quando, tão incómodo ser, existir. É tão massivo o mundo e tão pequeno o invólucro de que o Homem é feito. Como se pode transportá-lo, quiçá entre a derme e a epiderme, em células nervosas (uma aposta que nervosas), quem sabe se estas assim denominadas devido ao êxtase, à dimensão da sua responsabilidade, essa de sentir a existência e transportar o Universo. Porventura, nada disto é verdade, nada disto interessa.
A partir do exterior, tudo se afigura igual, fotográfico, estanque, taxativo. Já o oposto, graças a Deus (ousa-se atribuir-lhe a autoria da individualidade das impressões humanas) não se verifica. Cada ângulo de luz, cada hipotenusa, são claras extensões de odores e olhares. Basta que alguém se preste, por um momento, a perguntar-lhes “O que és, que assim passas?”.
Mas quem se dá ao trabalho?

Lado A

Algo súbito na travagem e perro na abertura, abre-se sésamo para mais um passageiro, uma jovem adolescente que, hesitante, entra. Tão enojada como enjoada de si e do seu perfume, aproveita os curtos segundos da viagem para com as duas mãos espremer excreções sebáceas que a sua cara vai libertando, numa expressão tão própria do crescimento do habitáculo estrangeiro a que chamam, os outros, corpo. O seu reduzido amor-próprio é claramente visível pela posição cabisbaixa da sua cabeça, pela inutilidade com que encara as mãos (tamanha a indecisão sobre o que fazer com elas, apêndices dispersos e incómodos). Limpando os dedos ao bolso das calças, espreguiça-se prolongadamente, (antes por mimalhice fosse, que o seu mal são as noites em branco) e deixa, por segundos, que a manga deslize, tornando-se evidentes os cortes no antebraço, desarrumados e feios.

Lado B

Preza-se tanto o movimento. Pfff. “Preza-se”. A acção é idolatrada. É de joelhos (em todas leituras que na expressão se possam vislumbrar) que se dispõem os malandros, os pensadores da dinâmica, esses activistas fanáticos. Provavelmente inexistentes, é certo, mas não menos desdenháveis por isso. O facto é que em qualquer banco de jardim há um velho pronto a clamar do seu etário pedestal que no seu tempo tudo era diferente, que os novos andam depressa de mais, que não mais se pára nunca.
Também quem lê quer movimento. Quantas vezes não foram saltadas, maltratadas e/ou ignoradas descrições, momentos de relaxamento da trama, espaços e tempos de reflexão, exposição, contextualização. Mas não, o que se quer é um contínuo espacio-temporal linear, sem solavancos e curvaturas. Porque é mais fácil.
É pena.
Se a cada paisagem se desse o devido cuidado, há tantos pormenores a descrever. Em cada vão de escada, as luzes, as plantas da dona Elvira, de vasos de plástico a imitar barro, gotas de ferrugem (a quem já se deixaram ver, fictícias e alaranjadas?), teias de aranha, reflexos de reflexos. Não se leria – admito-o. Mas que gozo teria para quem o escrevesse, a minúcia esforçada conduzindo, por via empredrada e sinuosa, para um final de que a priori se sabe estar incompleto. Que fulgor, que energia se pode dedicar a um vão de escada.
É mais difícil falar do estatismo. Que as nuvens passem, qual o problema? Mas qual a forma de cada nuvem, o matiz, o cheiro?

Lado A

Ao abrir das portas vêem-se dois jovens, de olhos inflamados e vermelhos (a suspeição da porteira acertada?) e mãos dadas. Entram, dificilmente ele, com as calças trinta centímetros abaixo do nível da água do mar, de modo mais fluido ela, ansiosa pelo momento a sós. Ao som de ferrugem, um raspar rude, rapidamente se fecha o elevador e, a uma velocidade próxima da do som, sobe a camisola da rapariga. Não tem nada por baixo, excepção feita a um pequeno brilho de metal no mamilo. Curiosamente ou não, o mesmo pode dizer-se sobre o jovem, cujo cinto de couro voou já para o outro lado do pequeno cubículo. Alheios aos espelhos, circundados por valores de temperatura perto da ebulição, não se esquece ele de pressionar no botão de parar (não buzina este, sorte dos dois), acidentalmente carrega ela com as costas, no frenético movimento, nos de todos os andares do prédio. Felizmente que está parado, felizmente que não há alarme. Não tomam precauções, ele por esquecimento, ela porque assentiu. Deixe-se cair uma cortina sobre o desrespeitoso evento, permitindo uma maior privacidade que a pelos jovens procurada neste acto púbico e público.

Lado B

Há algo de fascinante nos espelhos. - Que frase bacoca. - Ninguém reflecte sobre os espelhos. O acto de, olhando para a frente, ver atrás, é um plausível paradoxo demasiado familiar para ser notado. Mas mais curiosos que os espelhos isolados, são os espelhos em elevadores. Porque não se lembra algum louco – uma vez que tantos há, e tão prolíficos – de dissertar sobre esta espécie de reflectores que, quando assim posicionados, ocupando três das quatro paredes, têm a extraordinária e múltipla capacidade de nos desconfortar, se na presença de outros, de nos sublimar, se de matéria narcisista formos feitos e de nos prostrar por terra, se não suportarmos olhar nos olhos a raça de que somos feitos? Pense-se bem: afinal, que espécie de amálgama de plasma desconhecido é esse, que constitui os elevadores sem espelhos?

Lado A

De rompante, penetra uma mulher, bonita de aparência, embora algo de máscara nela seja sensível. Não admira porquê, uma vez que, mal dá por si sozinha, beija o objecto que retira de dentro da roupa interior: um anel, mais ofuscante ainda que o piercing da jovem. Ao que consta, não foram os seus trinta e oito anos de vida – qual a idade a que se cresce, dez, vinte, quarenta? – que a impediram de furtar da casa da pobre senhora, doente de bócio (um terrível espectáculo) onde pratica voluntariado três vezes por semana. Bem que o crescimento afecta a visão da idosa, ou não se safaria tão bem a ladra. As pagará. Ao sinal de paragem, abrem-se as portas, ficando presas algures a meio do seu caminho. Vê-se obrigada a afastá-las (“Elevador inútil!”), uma vez que o seu volumoso traseiro não é possuidor das condições necessárias para atravessar o curto espaço. Uma vez saída, de olhar orgulhoso e determinado, sorri para uma vizinha que passa, que felicita a boa samaritana.

Lado B

No tempo em que havia grades, de madeira as de dentro, de metal as de fora, cuidado com os dedos. No tempo em que havia uma porta por andar, e se podia tocar a parede em movimento – a dúvida entre de quem seria o movimento, das pessoas ou da parede, da parede quase de certeza –, cuidado com as costas e o nariz. No tempo em que as portas se tornaram deslizantes e automáticas – nem sempre muito deslizantes, nem sempre muito automáticas – cuidado com as mãos, os pés, as cinturas. Atenção à célula fotoeléctrica, atenção à porta, assassina de cotovelos.

Lado A

Por vezes, vêm falhas de energia, apagões. O casal que viaja emana um clima mais frio que o mês de Fevereiro que passa – mais depressa que os outros, como é, aliás, seu costume. Olham-se, distantes, como se as argolas que trazem nos dedos fossem uma brincadeira de mau gosto, um equívoco divino. De repente, eis que é chegada a quebra, que congela o tempo e o espaço, e eis que se foi toda a electricidade, reina o breu e antes reinasse o silêncio, que ruído é coisa que por estes lados sobeja. Atiram-se culpas para um lado e outro, uma porque queria ter descido pelas escadas, que até está gorda, outro porque sim está gorda, mas por ele teriam ficado em casa, devido à trovoada. Acalmar-se-iam os ânimos, em princípio, fosse retomada a descensão iniciada mas, aparentemente, nem o retorno da corrente impeliu o elevador a regressar à sua actividade. E enquanto o clima aquece, não com os corpos mas com as palavras e os perdigotos múltiplos com que se vão mutuamente borrifando, eis que surge uma estalada, indistinguível a sua origem na escuridão, mas bem audível o grito feminino. Move-se então o elevador, subitamente. A mulher agradece.

Lado B

Como aguentam os elevadores? Vendo entrar e sair homens e mulheres, vendo entrar que pessoas, que gente, que animais, anos e anos e anos, ininterruptamente, num pára-arranca, sobe-desce. Não se extenuam? Com todo o breu, a degradação e a depravação de que são involuntárias testemunhas, como se não esbate a sua eléctrica vivacidade? Porque não são, gradualmente, dilacerados com artroses de máquina, e tumores nos circuitos? Valerá a pena servir a escumalha e os seus corpos nus assentes em almas perfuradas, que como os balões perfurados tão rapidamente oscilam entre o voo alto e o nada?

Lado A

De tanto ver, o ascensor fechou as portas uma última vez. Desta feita, para sempre.

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