sábado, 15 de setembro de 2007

Indelével Morrinha

Da baça janela de enferrujadas calhas do meu terceiro andar, vê-se a calçada.

Não que tal seja raro, há por esse mundo fora infindáveis habitações de terceiro andar, onde não hão-de faltar janelas de correr, de metais corroídos pelo ar e pelo tempo. Quantas não serão as famílias de gente só com janelas outrora transparentes, agora impressionáveis apenas pelo sol, que, sem pedidos de licença, se transporta através do seu imo, na sua translucidez assustada. No fundo, a janela não pretende permitir que a atravessem, que lhe leiam, no seu âmago, o que a somente ela pertence, toda a sua realidade mais pulmonar, mais intestinal, íntima. Um evitar da transparência, da clareza, numa tentativa de esgar interior, uma revolta a favor da preservação de si apenas para si mesma. Sente que há características da nossa individualidade que são nossas e assim devem permanecer. Para quê a invasão dos nossos corpos e espíritos, ou vendo de outra perspectiva, para quê a transparência exacerbada, máscara tão usual de tristes janelas de má qualidade, que pela limpeza e asseio procuram provar o que não são, mas apenas aparentam? Respeito, como tal, a minha janela em toda a sua desarrumação visual, como anseio que a mesma janela, apesar de enferrujadas as calhas, veja em mim um ser individual, com algo escondido, algo que possa vir a ser revelado com a intimidade. São as pessoas, as janelas.
A minha janela, sou eu.

Da janela de correr do meu apartamento, é visível um passeio de milhos e pães intencionalmente abandonados por entre estátuas de heróis desconhecidos, trazendo consigo pombos numa nuvem, pouco uniforme através da vidraça, de asas e cores escuras; vê-se uma praça de velhos sob arcadas centenárias, por entre conversas intraduzíveis, linguagens exclusivas e indecifráveis seladas a lacre, para que apenas a eles pertençam, códigos de tempos idos e consumidos cujas memórias foram toscamente gravadas em recortes de jornal desbotado, referentes a um passado que é conservado apenas pelo saudosismo de quem não se sente preparado para enfrentar o que é e o que irá ser, que mergulha e escolhe viver de cabeça submersa em algo que o mundo foi outrora e já não é, em algo a que as pessoas e o próprio mundo estavam acostumados.
O calcário e o basalto são o alicerce da vida neste canto da civilização. Tudo o que aqui acontece é suportado pelas pedras da calçada, é sob (sobre) o seu olhar vigilante, controladores do frenesi urbano e do sentimento de formiga a que o nosso modo moderno de ser nos levou, que nos faz correr em direcção do nada, socorrendo-nos do utópico infinito que não foi nunca visto, apenas visionado, talvez ainda encerrado, juntamente com a esperança, numa caixa de Pandora algures nos recônditos de uma qualquer gruta, numa incógnita e anónima pedra de basalto. No fundo a calçada somos nós. Somos nós essa tentativa de preto e de branco, de contraste entre ser e não ser, entre bom e mau. Mas, na realidade, somos somente tentativa, pois em vez de preto e branco, somos azul ou bege, somos cinzento carregado ou clara impureza. Como o basalto da calçada, há de entre nós homens que quase atingem o que de mais negativo há na natureza da humanidade, sem no entanto alguma vez chegar ao limite – também o basalto do chão que pisamos nunca possui todo ele essa cor limite, esse negrume de noite sem estrelas. Somos imperfeitamente imperfeitos, por não nos ser permitido alcançar esse estado patológico de completa e crónica imperfeição. Por outro lado, nenhum de nós é tão desprovido de vícios, tão divino que seja calcário perfeito. Somos calcário e musgo, somos calcário e pó, calcário e solas de sapatos usados aguardando melhores dias. Somos algo de não alvo e não negro, mas não cinzento a meio. Somos quase extremos e não extremos, quase centrais e não centrais, quase tudo e quase nada, sem nunca o sermos de verdade. Sim, somos basalto e somos calcário.

Da minha janela vê-se o céu não azul. Azul e não azul, consoante o estado de espírito dos elementos, das correntes de ar e das névoas lá no alto. Hoje, através desta minha ferrugenta janela assente em sujas calhas, vejo o céu de cor de cinza, desconfiado, um tom cujo augúrio traz algo de indefinidamente preciso, algo que não me é permitido neste instante saber de que se trata.
Sob as arcadas, profundamente alheios ao céu, a essa pouco efémera transcendência que nos encima, alheios à azáfama, alheios ao movimento de quem vai e vem, de quem esquece, de quem acena um adeus, inclusive alheios a si próprios, repousam no seu descanso costumeiro de todos os dias os velhos da praça que observo. Dia após dia as mesmas feições amarrotadas, as mesmas expressões, a mesma atenção unicamente focada nas aves, nos pombos que de tanto lhes virem à mão já lhes conhecem as palmares linhas da vida, as boinas e os sapatos de graxa com odor a fresco. São-lhes familiares os cheiros de naftalina e de suor amarelecido de quem já viu Outonos demasiados, de quem vem todos os dias, mesmo quando a cidade pára e o tempo é roubado dos relógios, levando com ele a essência do ser desses objectos (que um relógio sem tempo é somente coisa, um objecto sem coração nem nome); mas cada velho, ignorando a ausência de tiquetaque, de cheiro para sempre inalterável, vem dia após dia após dia, até não vir, e quando não vier não veio e mais não virá. Por entre conversas mudas de dores corporais e de alma, incuráveis maleitas que atormentam os verdes bancos das arcadas da praça que vejo, a gente idosa alimenta os pobres pássaros já tão familiares, por entre temores pelo que vem e esquecimentos do que já foi, consequência inevitável de quem já viu demasiados Outonos e anseia por um que por cá fique, uma permanente estação que não origine, ano após ano após ano, neve branca que molha os bancos (sem no entanto fazer abalar os idosos) e cria alvos tapetes, que antecedem o renascer das folhas e dos sóis de fim de tarde, para depois retornar sem falha a mais um entediante Outono de folhas castanhas e secas, um Outono a que se ajoelham e imploram que fique, que se não acabe, que os não abandone, um perene Outono das suas mortes tranquilas.
Este duvidoso céu que me cobre o telhado e a cabeça, numa acção gradual mas resoluta, receio-o. Em momentos passados da minha existência, conheci-lhe as fúrias e os temperamentos, e não é com prazer que os saúdo se me levar o acaso a passar por eles num acelerado encontro sobre a calçada de uma qualquer ruela estreita.

Um instante. Uma gota.
Uma gaivota não faz a primavera, dizem. Também uma lágrima celeste desperdiçada pelo infinito não é sinal certo da vinda diluviana do temperamento dessa entidade transcendente em que não creio. Não obstante, bem que os meus olhos a lobrigaram, a essa gota que caiu no vidro do meu mal mobilado quarto. Um risco de água defronte de mim, um susto, um erro na afectada lisura superficial de areia derretida, suja pelos pombos, parentes daqueles que, sem me cansar, observo daqui, da minha janela, das minhas calhas ferrugentas.
Os velhos, na sua sensibilidade adquirida pela vida e pela experiência (qual experiência de vida), prevenidos com toda a parafernália de objectos que lhes são mais que característicos, preparados em qualquer circunstância para o que der e vier, o lenço sem mácula de traça, o rebuçado para a garganta arranhada, o porta-chaves com símbolo de clube esquecido no caminho da memória, o porta-moedas, o casaco, o cachecol, as agulhas de tricot, o jornal desportivo, a dentadura que teima em descolar. Os bancos de jardim parecem alojá-los durante a noite mas não, apenas uma sombra, apenas uma presença que fica de uns dias para os outros, irremovível. Ao sentir a marca do choro divino, abrem os idosos os seus guarda-chuvas sem espécie de hesitação. Mas sem necessidade, já que essa ameaça de chuva provou não passar de isso mesmo, uma ameaça. Parado, fico com a testa colada ao vidro sujo, colada precisamente devido a essa sujidade que me impede de ver a determinada distância a paisagem semi-urbana que se desenrola defronte dos meus olhos. No fundo só me encontro aqui estático, com esta atitude contemplativa, levado por um desejo de fugir ao meu papel escuro de parede e procurar a claridade do que não é meu e por isso me agrada. Sinto qualquer coisa de poético no frio que me arrefece a cara e no vapor que se aloja no meu vidro sujo, resultado da minha quente respiração. Mais uma vez o meu pensamento se reflecte no conjugar das condições climatéricas pouco propícias, no frio lá de fora (e por vezes cá dentro também) no cinza celeste, na gota, a simples gota multiplicada que simultaneamente assustou a minha pessoa e cada um dos velhos nos bancos verdes sob as arcadas, não directamente sob as mesmas, ou não seria preciso qualquer guarda-chuva, sob apenas segundo a perspectiva que experimento ao espiar os seus movimentos a partir deste meu apartamento de terceiro andar.
A multiplicada gota, portadora da minha mensagem indecisa de chuva e não chuva, obriga-me a segundo vislumbramento da cena a decorrer perante a minha vista, confirmando ou desmentindo a existência de mais como ela a descerem do alto para lavar de impurezas o chão não branco e não preto da minha cidade, da minha praça. Mas não há chuva nem sol, há nuvens, há neblina húmida a atravessar o vidro e o meu corpo, enregelando a borracha gasta das vidraças e o isolamento das minhas calhas enferrujadas. Certamente que se apercebem os idosos dessa atmosfera carregada de vapor que os rodeia e que me surpreendeu num momento tão impreciso, devido à minha incapacidade de o situar, uma vez que todos os meus referenciais se foram com a secura do ar que me envolve, foi-se o tempo do relógio veio a humidade no barómetro. Não veio a chuva e não veio o sol, veio isto que não é nada, são umas gotas que nem gotas são, uma água que mal se sente mas molha, uma camada de gotas não gotas numa geada nas boinas dos senhores dos bancos.

Morrinha, na minha praça. Já não lhe lembro o início e não antevejo o seu fim. Pego num trapo limpo e tento limpá-la, fazê-la sumir disto que vejo, esfrego a vidraça sem sombras de sucesso. Os senhores idosos reconheceram o morrinhar e acolheram-no como seu, com a simples abertura de um guarda-chuva, decisão que para um jovem só após demorada deliberação e para um adolescente se apresentaria profundamente desnecessária. A nova atmosfera inquietamente pacífica foi absorvida pela paisagem, pela imagem, tornando-se quase imperceptível. Uma humidade fria faz festas na minha janela, comunicando por entre leves lufadas de vento.
A minha janela é a morrinha que já não vejo. A minha janela sou eu.

(Dezembro de 2006)

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